Os Gritos do Silêncio (1984)
Aqui, apenas os silenciosos sobrevivem.
Sinopse
Filipe Manuel Neto
Escrita em 4 de Setembro de 2023**Um filme notável que merece ser revisto e que recorda um momento bárbaro da história de um país.** Quando há uma guerra, é seguro que vai haver um filme sobre o que aconteceu durante essa mesma guerra. Os conflitos humanos sempre alimentaram a indústria do cinema. É algo instintivo, somos atraídos pelo horror da carnificina ao mesmo tempo que sentimos culpa disso e nos cansamos de condenar a violência e a crueldade. Acho que só mesmo quem viveu uma guerra é que tem a capacidade de superar este paradoxo, não só pelas memórias evocadas, por vezes traumáticas, como pela consciência de que não há nisto nada de verdadeiramente belo. O que aconteceu no Camboja (e no Ruanda, e na Bósnia e noutros países) foi muito pior que uma guerra. Foi um genocídio, um crime contra a humanidade levado a cabo devido ao fanatismo político de um pequeno grupo de “homens” que tentou impor uma visão do mundo, muito própria, e matar quem discordasse. O que este filme faz é mostrar-nos um aroma do que aconteceu, trazendo-nos a história verdadeira (obviamente ficcionada) de um jornalista cambojano que, em 1973, salvou as vidas de um grupo de colegas do Ocidente, mas acabou por ficar para trás, preso num campo de prisioneiros cambojano. Acho que não estarei incorrecto se disser que, considerando os documentários que já vi sobre o assunto, o filme mostra uma visão muito leve e atenuada das crueldades que ali aconteceram na época. Roland Joffé equilibrou-se bem, dando ao filme um realismo cru sem o tornar excessivamente gráfico, e apostando na carga emocional, nas emoções que tudo pode despertar no público. Não precisamos ver mais do que vemos para sentirmos a dor daquelas pessoas e o medo que passaram. Sam Waterston faz um trabalho interessante na pele de um jornalista americano que vai tentar desesperadamente encontrar o homem a quem sente que deve a sua vida. Julian Sands e John Malkovich também aparecem, mas não têm muito tempo ou material para se destacarem, limitando-se ao que podem fazer. Quem está sob os holofotes, com todo o mérito, é Haing S. Ngor, um actor cambojano que deu vida à personagem central desta história e que sabia muito bem o horror que o seu país havia passado: ele mesmo vira as realidades que interpretou como actor, e havia sido prisioneiro do Khmer Vermelho. Por isso, há uma carga dolorosa de realismo na sua interpretação que perpassa a tela e chega até nós, e à qual não podemos nem conseguimos ficar indiferentes. Tecnicamente, o filme é perfeito: filmado maioritariamente na Tailândia, aproveita bem os cenários e cria algo em que podemos acreditar. Os cenários e figurinos são do mais realista que há e a cinematografia lembra um pouco aqueles filmes de guerra antigos no Vietname. Há bons efeitos especiais e algumas cenas dignas de antologia, como a que nos apresenta os campos de prisioneiros e as “lavagens cerebrais” as que eram sujeitos à força pelos seus captores. A banda sonora nem sempre é eficaz, às vezes soa de maneira excessivamente melodramática, mas é o único senão a registar numa produção notável, e que merece ser vista e revista.