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Brazil: O Filme (1985)
Apenas um estado da mente.
Sinopse
Filipe Manuel Neto
Escrita em 4 de Março de 2023**Um filme que dava para mais de uma crítica: sonho, pesadelo, utopia e realidade.** Foi em 1939 que o compositor e cançonetista Ary Barroso lançou a icónica canção “Aquarela do Brasil”. Este samba tornou-se num ícone da música brasileira e foi cantado e divulgado por vozes tão nobres quanto Francisco Alves, João Gilberto, Tom Jobim, Caetano Veloso, Tim Maia, Gal Costa, Erasmo Carlos, Elis Regina e, em versões para língua inglesa, Frank Sinatra e a portuguesa Carmem Miranda. Ary Barroso, porém, jamais imaginou que a mera visão de um idoso, sentado numa praia em dia de chuva enquanto ouvia a sua canção, acabaria por inspirar Terry Gilliam a fazer um filme. Mas antes que estas palavras possam induzir alguém em erro, e especialmente algum brasileiro, é necessário esclarecer que o filme não tem nada a haver com o Brasil. O filme passa-se num país sem nome que vive em ditadura (tudo bem, o Brasil era uma ditadura quando o filme foi lançado, mas a semelhança acaba aqui). O Governo, obcecado pelo controlo de informação, criou um sistema burocrático monstruoso e altamente ineficaz que comete erros fatais. É por culpa de um desses erros que um cidadão é preso e morto como um revolucionário, confundido com o verdadeiro foragido. E assim conhecemos Sam Lowry, funcionário do Governo com uma vida convencional que é atormentado por sonhos aonde voa como um pássaro e salva uma donzela em perigo. A vida dele muda, precisamente, quando encontra uma mulher igual à do sonho e verifica que ela corre, também, perigo de ser presa por culpa de outro erro. Eu não vi ambos os filmes, mas dou crédito aos críticos que disseram haver semelhanças entre este filme e “1984”. Eu mesmo pude ver as semelhanças com “Metrópolis”, quer na narrativa, quer nos aspectos visuais bizarros e exagerados. Tal como nesses filmes, temos uma sociedade distópica, totalitária, onde o indivíduo é despido da sua humanidade e se torna numa peça de uma engrenagem maior, servindo o Estado. Claro, o filme tece uma longa e judiciosa crítica em torno disto e da burocracia que o país sustenta, e que não tem grande utilidade prática. Também nos brinda com algumas críticas afiadas às necessidades fúteis e à vaidade da sociedade actual. O grande problema é que tudo isto parece não ter significado. De facto, a trama principal passa à margem destas questões: Sam, a personagem principal, não é um revolucionário nem parece ter ideias políticas. Aliás, se observarmos, ele parece agir quase por instinto, vivendo a sua vida como se de um sonho se tratasse. A trama principal é pouco aproveitada e harmoniza-se mal com o resto do filme, como se entrasse em conflito com os visuais e os outros pontos do roteiro. Gilliam fez um filme original. Onde ele falhou foi na conjunção harmónica das peças da sua obra. E claro, na relação com os estúdios, que quase o obrigaram a aceitar um corte radical no filme, considerado excessivamente longo e caro. Em abono da justiça, eu consigo compreender ambos os lados: os estúdios estavam a tentar rentabilizar um investimento e racionalizar despesas; por seu turno, Gilliam não queria a sua obra criativa feita em postas, ainda que seja evidente onde se gastou o dinheiro: basta ver os visuais incríveis, a forma onírica com que se expressa enquanto director. Jonathan Pryce é o actor em destaque ao interpretar Sam. Ele dá-nos um trabalho de grande qualidade e é muito bem coadjuvado por Katherine Helmond, num interessantíssimo papel sarcástico, e Kim Greist, o seu par romântico. O filme conta ainda com as participações de grandes actores da época, a saber Bob Hoskins, Jim Broadbent, Barbara Hiks, Ian Holm, Michael Palin e Robert De Niro. Isto mostra talvez o prestígio e a consideração que o meio artístico já nutria por Gilliam: os actores, mais do que ter um salário bom, queriam trabalhar com ele. Tudo isto é muito bonito, mas porque o filme se chama Brasil e porque falei eu numa canção? Eu também fiquei a pensar nisto por algum tempo, realmente é algo que não parece compreensível a um primeiro olhar. Eu vi o filme e nada me parecia dar a resposta para a escolha do título, a não ser a insistência na canção, a qual é o esqueleto em cima do qual foi montada a banda sonora do filme. Mas talvez Gilliam tenha tentado mostrar-nos, através desta canção, a utopia onírica do sonho de Sam em comparação com as fantasias de outros e a distópica realidade da sua vida.